hoje tive um sonho
todos os dias sonho, bem sei
mas hoje tive daqueles sonhos que, de repente, entram na consciência
daqueles em que acordo sem acordar
foi nesse fio, entre a consciência e o sonho, entre o dormir e o despertar que vibrei e decalquei na memória o conteúdo precioso
estava num aeroporto, a aguardar pelo embarque
por algum motivo, que não sei precisar, sentei-me numa mesa de madeira, castanha escura, alta, estilo bar; com 3 cadeiras, igualmente altas, de costas baixas, que apenas apoiam a zona da lombar
de pés na trave da cadeira, a uns bons palmos do chão, tenho uma criança sentada à mesa comigo. não é meu filho
estamos a fazer uma espécie de jogo, daqueles com que jogo no meu trabalho (mascarados com uma estrutura lúdica, são de aprendizagem e estimulação cognitiva)
a criança, um rapaz, está com alguma dificuldade em perceber o conceito necessário para concretizar o desafio
vou adaptando estratégias e experimentando várias pistas
ele continua com dificuldade. não se desespera mas a frustração começa a diminuir-lhe a permeabilidade às minhas tentativas de o apoiar
sinto a minha impaciência, crendo que não a revelo mas que a criança já a intui
uma senhora, no guiché das passagens, assiste à situação com irritação crescente… em relação a mim, não à criança
o olhar áspero e os lábios cerrados, alternam com um revirar de olhos e soprar audível, cada vez mais exuberantes e notórios
não sendo feia, tem uma imagem e gestos incómodos, quase agressivos… proporções desconcertantes. não sendo feia, é como se fosse
tenho cada vez mais dificuldade em abstrair-me das suas reacções
a minha inquietação agiganta-se, inversamente proporcional ao entusiasmo do menino
já não consigo pensar bem sobre a criança ou o jogo, já só estou a monitorizar o que lhe diminui a zanga e irritação ou que lhas acentua
o miúdo está cada vez mais desanimado e confuso
eu com cada vez menos capacidade de sugerir seja o que for
e ela cada vez mais irritada comigo
em pano de fundo a preocupação com o horário do avião e com a iminência de ter que embarcar, desejando fazê-lo já com o sucesso do menino assegurado
respiro fundo e levanto-me
para meu espanto ela está totalmente sincronizada comigo
sai do seu espaço, exactamente no momento em que me levanto
encontramo-nos precisamente a meio do trajecto e em uníssono dizemos:
«assim não dá»
em silêncio, olhamo-nos profundamente.
respiramos fundo e, para surpresa da duas, voltamos a dizer em coro:
«é preciso adaptar para ele»
dois sorrisos discretos. mais pela sincronia da intenção do que pelas deixas em simultâneo.
conseguimos descolar as palavras e digo:
«eu estou a tentar adaptar ao que ele necessita mas com a pressão toda que sinto no teu olhar e nas tuas expressões, acabo por ficar condicionada e parte das adaptações já eram em função de ti e da tua reação. acabei por sentir que estou a adaptar para ti, mais do que para ele»
sorriu e anuiu com a cabeça, numa subtileza que preencheu o gesto de uma graciosidade e beleza que iluminaram aquele foco de paz e entendimento, no meio das interações e passos apressados… no meio da confusão
a irritação encolhe. mingua até à inexistência
agora o que está em simultâneo é o nosso pensar e sentir
sabemos que a nossa preocupação é exactamente a mesma, sabemos que acreditamos na mesma solução e que a impotência de cada uma, na sua posição, estava a interferir com o que mais importava… às duas
voltamos cada uma ao seu lugar, em confiança e esperança
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