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não queres ficar sem nenhum dos teus berlindes, pois não?


Quando tinha 4 anos, nasceu-lhe o irmão mais novo.


Recebeu a notícia sem qualquer entusiasmo.


Olhava para o irmão mais velho, escutava-o atento, tentava acompanhar-lhe a alegria… com o tempo, creio que desistiu.


Acabou por me perguntar: mas para que querem um bebé? Acho que lhe respondi o melhor que pude. (Sabendo que o melhor ficou muito longe do que poderia ser uma boa resposta, daquelas capazes de lhe despertar a vontade e desejo de ter um irmão bebé.)


Chegou no seu tempo. O bebé! não o entusiasmo do irmão (que passaria a ser o do meio durante os oito anos seguintes).


O bebé foi crescendo. O afecto também. A par com a, cada vez maior, incredulidade com o embevecimento que, aparentemente, todas as pessoas sentiam perante um bebé.

Agora, de experiência feita, não conseguia mesmo perceber o porquê do frenesim e magnetismo emocional que uma criatura altamente dependente, que chora, mama, utiliza uma fralda (onde podem ficar armazenados por vários minutos os subprodutos dos sistemas digestivos e urinários)…


E assim foram crescendo.

O mais pequeno deslumbrado com os mais velhos, o mais velho enternecido com o mais novo e o do meio… a meio… a meio caminho de uma irmandade que cresceria com eles, mesmo sem que compreendesse como.


Quando o bebé começou a gatinhar, as interações complexificaram-se e os cuidados intensificaram-se.



“Cuidado. Não deixes isso no chão. Se o bebé apanha, põe na boca e pode engolir… é perigoso”. – eram as palavras de ordem. Que os mais velhos, já sabiam repetir a preceito.



A perícia na repetição, não traduzia a minucia na acção. Bonequinhos, rodinhas, pecinhas… continuavam a pontoar o soalho da casa.

A ladainha repetia-se a compasso. Paciente. Arrastada. Suspirada.


O do meio, dado a colecções, andava a braços com o seu novo tesouro: berlindes! O que poupou em entusiasmo com a chegada do irmão, investiu nos seus berlindes. Catalogados. Estimados. Organizados.

Relíquias, cuidadas, adoradas… bolinhas vítreas, coloridas… especiais e únicas. Um tesouro que espalhava no chão do quarto para adorar, organizar, verificar, imaginar… um PAVOR!


O seu tesouro. O meu pesadelo. Uma aventura para um bebé de 7 ou 8 meses que, qual Pacman, tentava recolher o maior número de bolinhas possíveis até ser travado por uma mãe fantasmagórica que, com o coração na boca, tentava recitar a ladainha num tom demasiado paciente, arrastado e suspirado, que mal camuflava a sua exasperação:


- Cuidado, filho. Não deixes os berlindes no chão. Se o bebé apanha algum berlinde…

- já sei. já sei... – revirando os olhos – se apanha um berlinde, põe o berlinde na boca.


- pois é – sorrindo e desejando que as palavras aterrassem e se ancorassem no fundo da sua memória – põe na boca e…

- já sei. já sei... – ainda com os olhos revirados – põe na boca e pode engolir.


- é isso mesmo, filho – ganhando convicção de que a mensagem estava a ser integrada – pode engolir...

- já sei. já sei... – interrompe-me novamente, acompanhando o revirar de olhos com um suspiro – pode engolir e depois não conseguir respirar


- simmmm… – digo com a voz a sumir-se e a tentar lembrar-me se alguma vez teria sido assim tão específica

- e se não conseguir respirar, morre.

- hummmm??? – certa de que nunca lhe tinha entregue tal explicação, mas demasiado surpreendida para processar a informação a um ritmo razoável para responder a uma criança com 4 anos

- e se ele morrer…

- ãh!? – entre a curiosidade mórbida para onde a conversa nos estava a levar e a total incapacidade de articular alguma coisa de jeito

- fico sem o meu berlinde!

...

...


- ficas sem o teu berlinde????? FICAS SEM O TEU IRMÃO!!!! – pensei. pensei. depois deixei de pensar. por uns instantes, deixei de pensar. (quem sabe se não deixei mesmo de respirar!? tal como se tivesse emborcado um saco de berlindes)


Quando os pensamentos voltaram a mim, consegui finalmente dizer-lhe:

- exacto. e tu não queres ficar sem nenhum dos teus berlindes, pois não?

- não, mamã. – atirou, recolhendo o seu querido tesouro…

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