foi assim que começou:
«mãe, gostava de saber tocar guitarra»
foi com surpresa que recebi a mensagem, natural, de viva voz, na escada do prédio, mesmo à saída
este filho nunca tinha demonstrado interesse em aprender um instrumento, nunca tinha demonstrado interesse em música, que não fosse na óptica do utilizador
tentei não me deixar tomar pela perplexidade e procurei manter o mesmo tom natural. levou alguns segundos a encontra-lo. já estávamos sentados no carro quando lhe disse:
«então vamos ver onde podes ter aulas de guitarra»
«mãe, não estás a perceber. eu gostava de saber tocar guitarra. eu não quero aprender a tocar guitarra»
«mas isso não é possível» – já não consegui esconder a perplexidade, agora embrulhada em choque. a mãe julgadora que vive dentro de mim perguntava-me «o que é que andaste a fazer???? Como é que um filho teu acha que pode saber fazer uma coisa que nunca fez, sem ter que a aprender? É isto que queres que os teus filhos pensem que é a vida? Como é que vais meter na cabeça deste miúdo que para conseguir algo tem que trabalhar, conquistar???»
«Eu sei que não é possível» - respondeu tranquilo
«hummmm, então como é que vais saber tocar guitarra?» - salva pela mãe consciente e curiosa
«não vou saber»
«mas acabaste de me dizer que gostavas de saber tocar guitarra!?!?» – a mãe consciente viu o sorriso sarcástico da mãe julgadora
«mãe, eu disse que gostava de SABER tocar guitarra. eu não disse que gostava de ir APRENDER a tocar guitarra.»
«mas isso não dá» – a mãe confusa e aflita junta-se às outras duas
«claro que não. por isso é que eu não sei tocar guitarra e provavelmente nunca saberei. o que eu gostava mesmo era de saber, pronto. assim: sabia e pronto. ter que ter aulas, aprender, dedicar-me não me apetece. nem quero. mas era mesmo fixe se simplesmente soubesse tocar. sem ter que fazer nada para aprender. não era? não gostavas de saber tocar guitarra?»
«bemmmmmmm» –a mãe consciente pôs ordem na algazarra. pausa. inspiração profunda.
pensei uns instantes sobre o que eu realmente gostava, desejava. larguei o “como é”. recebi o convite do meu filho «sonha mãe, estamos só a sonhar. a desejar.
«bemmm, se eu pudesse escolher uma coisa que não sei fazer e por artes mágicas passasse a saber, seria mesmo muito fixe. eu escolhia saber patinar. nos meus sonhos, eu sei patinar. nos meus sonhos eu patino, vejo-me a patinar» – acabou por dizer a mãe consciente com um sorriso na cara e vontade de abraçar e beijar furiosamente este filho. cujo o perfil contido já mais teria perdoado tal comportamento em via pública, ainda que dentro do carro.
«nos teus sonhos estás sempre de patins????»
«NÃO. Eu não sonho todos os dias com isso. só sonho às vezes. há noites em que sonho que estou a patinar e nem sequer tenho os patins calçados»
«isso é estúpido»
Não consegui parar de rir.
«claro, que é. saber tocar guitarra sem ter que aprender, isso sim é plausível» – juntou-se a mim nas gargalhadas. as dele com os decibéis adequados ao que acha conveniente publicamente. as minhas, segundo ele, nem por isso.
«mãe, para» – pediu-me, quando já estávamos fora do carro
quando me recompus, fiquei a pensar no que tinha acabado de receber deste meu filho:
gostar de saber é uma coisa, quer aprender é outra
desejar alcançar um objectivo, uma competência, é uma coisa; querer passar pelo processo necessário para o conseguir, é outra
sonhar é uma coisa, decidir concretizar o sonho é outra
querer o resultado e querer aderir ao processo necessário para o atingir, são duas coisas completamente diferentes
passei a fazer, várias vezes, versões desta pergunta: quero saber ou quero aprender? gostava de ser capaz ou quero praticar para ser capaz? gostava pertencer ao projecto para o qual fui convidada ou quero investir o meu tempo e energia nele?
frequentemente esta pergunta (nas suas variações) levou-me a consciencializar que na verdade eu não queria passar pelo processo e portanto o melhor era manter presente que é só um desejo, uma ideia gira, sedutora... não é nada que eu de facto esteja na disposição de empreender
foi um alívio. a lista de afazeres reduziu francamente, as expectativas também e o foco onde quero investir o meu tempo e energia aumentou
quando a técnica se estabeleceu e normalizou, dei por mim a utilizá-la no meu trabalho:
…. conto a história do G. e depois pergunto:
gostava de puder ajudar o seu aluno com dificuldades ou quer ajudá-lo?
gostava de ter uma Parentalidade mais Consciente ou quer ter uma Parentalidade mais Consciente?
tem-me poupado muitos dissabores e investimentos inglórios.
passaram-se vários anos, continuo maravilhada
estes filhos trazem-me doses absurdas de simplicidade e clareza
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